O legado da juíza Ginsburg e as mulheres no direito brasileiro
Homenagem à juíza Arronenzi
Texto por Livia Lopes e Ana Carolina Fisher
Na maioria dos Estados vigora a regra do winner takes all (o vencedor leva tudo, em tradução livre): qualquer que seja a chapa eleitoral do partido que receber mais votos populares, fica com todos os votos eleitorais dos delegados. Há duas exceções, contudo: Maine e Nebraska. Estes Estados dão dois delegados para quem quer que ganhe o Estado geral e, em seguida, um delegado para o vencedor de cada distrito congressional individual.
Se nenhum candidato obtiver a maioria dos votos eleitorais, o Senado escolhe o vice-presidente e a Câmara, o presidente. Mas a decisão da Câmara funciona de forma diferente do normal: a delegação de cada Estado tem direito a um único voto, o que significa que os grandes Estados têm o mesmo peso que os pequenos, semelhante ao que ocorre no Senado (em que cada Estado, a par do tamanho de sua população, tem direito a 2 membros cada, consoante acima referido).
Em dezembro, em uma cerimônia pró-forma, os delegados lançam seus votos para presidente e vice-presidente, e, em tese, devem acompanhar a votação popular de seu Estado. Em raras ocasiões na história alguns delegados votaram em um candidato diferente do esperado - os chamados “eleitores infiéis”, cujo comportamento é protegido pela Constituição. Todavia, uma decisão recente da Suprema Corte declarou que o Estado pode exigir que os delegados apoiem o vencedor do voto popular e punir ou substituir aqueles que assim não procederem. Os votos são contados em sessão conjunta do Congresso e o presidente é eleito oficialmente. Ele então tomará posse em 20 de janeiro.
O QUE ESPERAR PARA AS ELEIÇÕES DE 2020?
No fim de 2020, a notícia de que a vida de uma juíza foi ceifada a facadas pelo ex-marido em frente às três filhas do casal, em plena noite de natal, estarreceu a comunidade, em especial a jurídica. Viviane Arronenzi integrava a magistratura do Estado do Rio de Janeiro havia 15 anos e trabalhava na 24ª Vara Cível da Capital. Infelizmente, ela é mais uma das mulheres que o país perde vítima de feminicídio. O caso escancarou mais uma vez que as mazelas de gênero não respeitam classe social, nem nível de instrução ou profissão.
O caso também fez perguntar como está a situação das mulheres no Direito Brasileiro, de onde viemos e para onde estamos caminhando – e a que passo. E, é claro, o liame com um ícone da luta feminista no e através do Direito, cuja vida foi perdida ano passado, por causas naturais, foi inevitável. Planejávamos escrever há tempos sobre a trajetória de Ruth Bader Ginsburg e examinar conjuntamente o cenário do feminino no mundo jurídico pátrio. É o que passamos a fazer nas linhas abaixo.
RBG
Em 18 de setembro, foi anunciada a morte de uma das mais célebres juízas a ocupar um assento na Suprema Corte dos Estados Unidos, Ruth Bader Ginsburg (popularmente conhecida como RBG), que sucumbiu a um câncer pancreático metastático após duas décadas de luta contra a doença. O que pareceu mais um sexta-feira comum para o resto do mundo, foi um momento de grande comoção e pesar para o povo norte-americano, que via na figura da juíza um símbolo de luta e resistência.
“Rest in Power, notorious RBG” foi o que se lia por todo o país. A frase “descanse no poder” em tradução livre, variante da célebre expressão inglesa “rest in peace” (descanse em paz), é um chamado por justiça social e usada para prestar homenagem a figuras que, ao longo da vida, combateram preconceitos e lutaram pelas minorias, sugerindo que, mesmo após a morte, continuarão tendo o poder de fazer a diferença.
A juíza foi a segunda ocupante de um assento na Suprema Corte a ser velada no Capitólio, uma honraria conferida a alguns dos mais distintos cidadãos norte-americanos, dentre os quais estão os ex-presidentes JFK e Abraham Lincoln e a ativista Rosa Parks, a única mulher antes de Ginsburg a receber esta homenagem. Antes da cerimônia no National Statuary Hall do Capitólio, seu caixão foi exposto ao público nas escadas da Suprema Corte, onde milhares de pessoas puderam prestar suas homenagens à líder da ala liberal da corte.
Seus admiradores vieram das mais diversas partes do país, de Vermont a Louisiana, e muitos percorreram horas a fio para dizer adeus à sua heroína. Em entrevista ao Washington Post, um homem que dirigiu da Pensilvânia com sua filha disse “Quando eu era mais jovem, costumava esperar a noite toda para comprar ingressos para shows. Essa mulher é a própria definição de uma estrela do rock, então eu esperaria a noite toda para vê-la? Com certeza.”.
A cerimônia que celebrou a vida e o legado da juíza foi um acontecimento de grandes proporções e reuniu os juízes da Suprema Corte pela primeira vez desde o início das medidas de contenção da pandemia do COVID-19, em meados de março de 2020. O presidente do Tribunal, Chief Justice John G. Roberts, afirmou que a nação perdeu uma jurista de relevância histórica: “Hoje nós estamos em luto, mas com confiança de que futuras gerações lembrarão de Ruth Bader Ginsburg como a conhecemos – uma defensora da justiça, incansável e resoluta”.
Quando questionado a respeito do significado e relevância de RBG, o Juiz Federal Sênior Peter J. Messitte (Judge Messitte) aponta que ela foi uma grande pioneira na área de direitos das mulheres e direitos de minorias, que já havia feito sua fama mesmo antes de ocupar um assento na mais alta corte dos Estados Unidos. Ele comenta que, por ocasião de sua nomeação, “ela não era apenas uma juíza de segunda instância comum – ela deixou sua marca como defensora dos direitos das mulheres por meio de sua atuação na União Americana pelas Liberdades Civis (American Civil Liberties Union - ACLU) por anos, litigando em casos de grande relevância perante a Suprema Corte”.
Em um comunicado de imprensa por ocasião do falecimento de RBG, David H. Souter, ex-juiz associado da Suprema Corte, afirmou que ela foi um dos membros do Tribunal que alcançou a grandeza antes mesmo de se tornar uma grande Juíza.
O PRINCÍPIO DA TRAJETÓRIA
Nascida em 1933, no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, de descendência alemã e religião judaica, filha de um imigrante de Odessa e de uma contadora nova-iorquina, RBG ingressou na faculdade de direito da Universidade de Harvard na década de 50. Uma entre 9 mulheres em um universo de 500 estudantes no seu ano, RBG logo desponta como a melhor aluna da sala, começando a penetrar no que até então era um universo dominado pelo masculino.
Em um episódio que ficou mais tarde conhecido como parte de sua trajetória de superação dos obstáculos de gênero, o reitor da faculdade de direito de Harvard à época perguntou a ela e às outras 8 mulheres que faziam parte de sua turma como elas justificavam tomar o lugar de um homem na escola de Direito. Anos mais tarde, por ocasião de suas audiências de confirmação para o assento na Suprema Corte em 1993, a juíza recordou ter sido impedida de acessar uma biblioteca da universidade, que não permitia a entrada de mulheres.
Antes de ascender à Suprema Corte, RBG levou anos prosperando em face das adversidades. Quando seu marido, também aluno de Harvard, é diagnosticado com câncer, ela passa a assistir às classes dele para ensiná-lo em casa. Mesmo diante de uma carga de estudos e cuidados redobrada, ela consegue se manter como a melhor de sua turma. Ela foi a primeira mulher a integrar o renomado jornal acadêmico “Harvard Law Review”.
Para acompanhar o marido recém-formado e ainda convalescente, o qual havia aceitado uma proposta de emprego na área tributária em uma importante banca de advocacia, ela se muda de Boston para Nova Iorque. RBG cursa seu último ano de faculdade na Escola de Direito da universidade de Columbia, onde encontrou um ambiente acadêmico mais favorável e maior apoio às suas necessidades de mãe, mulher e de estudante. Ela também integrou o “Law Review” da instituição e se formaria em 1959 como a primeira de sua turma.
Já depois de graduada, o seu histórico acadêmico excepcional não foi capaz de blindá-la da discriminação sofrida por mulheres no ambiente de trabalho dos anos 60. Recusada por várias firmas na cidade de Nova Iorque sob o único pretexto de ser mulher, ela acaba indo trabalhar como assessora de um juiz, onde fica por dois anos. Posteriormente, até recebe ofertas de escritórios, mas sempre a um salário inferior ao de seus colegas homens. Ela então decide dedicar-se a uma outra paixão jurídica, o processo civil. Junta-se ao projeto de Columbia em Processo Civil Internacional e muda-se para a Suécia para desenvolver suas pesquisas, que culminariam em um livro sobre as práticas do processo sueco.
Quando volta aos EUA, RBG aceita uma posição de professora na Faculdade de Direito da Rutgers University, em 1963. De lá, sai apenas quando começa a lecionar na Universidade de Columbia, em 1972. Em Columbia, ela é a primeira mulher a tornar-se professora titular de uma cadeira em tempo integral (full-time tenure professor).
Durante a década de 70, ela também dirigiu o influente projeto de direitos femininos da ACLU, já acima mencionada. Nesta posição, ela comandou uma luta contra a desigualdade de gênero e defendeu com sucesso seis casos históricos perante a Suprema Corte dos EUA: Frontiero v. Richardson (1972), Kahn v. Shevin (1973), Weinberger v. Wiesenfeld (1974), Edwards v. Healy (1974), Califano v. Goldfarb (1976), Duren v. Missouri (1978). Neles, RBG ajudou a derrubar a barreira jurídica que existia à igualdade de gênero nos Estados Unidos, lutando não apenas em prol das mulheres excluídas, mas também de homens que haviam sido alvo de discriminações legais.
Ao relembrar a trajetória de RBG, o Judge Messitte estabelece uma comparação com a famosa dupla de dançarinos da década de 30, Fred Astaire e Ginger Rogers, dizendo que “as pessoas viam Fred Astaire como um exímio dançarino, mas Ginger Rogers tinha que fazer tudo o que ele fazia, só que de trás para frente e usando salto alto – essa era a diferença”. Isso dá uma ideia do esforço redobrado que RBG teve que dispensar ao longo de toda a sua trajetória para acessar um universo de oportunidades até então restrito a homens.
A ADVOCACIA PERANTE A SUPREMA CORTE
À época, a Suprema Corte era integralmente composta por homens de idade, brancos e da elite. RBG era uma jovem mulher advogada, embora já professora e extremamente bem preparada, patrocinando casos complexos que tratavam sobre discriminação de gênero perante um tribunal composto por membros oriundos da parcela mais privilegiada da sociedade americana, que não sofriam as consequências negativas do sistema discriminatório em que viviam.
Em Frontiero v. Richardson, julgado em 14 de maio de 1973, Sharron Frontiero, uma tenente da Força Aérea, buscou obter um subsídio de dependente para seu marido. A lei federal previa que apenas esposas de militares eram automaticamente consideradas dependentes para fins de obtenção de benefícios; maridos de membros do sexo feminino do corpo militar, contudo, não eram aceitos como dependentes, a menos que eles dependessem de suas esposas para prover mais da metade de seu sustento. O pedido de Frontiero foi negado.
A seguinte indagação foi levada à Suprema Corte: a lei federal que estipula critérios diferentes para a determinação do status de dependência de cônjuges homens e mulheres estaria inconstitucionalmente causando discriminação contra mulheres e, portanto, violando a cláusula do devido processo legal?
Em decisão majoritária por 8 votos a 1, com voto condutor do Justice William J. Brennan Jr., a Corte definiu que a regulamentação em questão claramente dispensou tratamento dissonante para homens e mulheres que se encontravam em situações semelhantes, “violando a cláusula do devido processo e as exigências de igual proteção que esta cláusula impinge”. O voto condutor, aplicando um padrão estrito de revisão para classificações baseadas em gênero (o mesmo utilizado para classificações raciais), concluiu que a conveniência administrativa do governo não poderia justificar práticas discriminatórias.
Por sua vez, o voto do Justice Lewis F. Powell, acompanhado pelo Chief Justice Warren E. Burger e pelo Justice Harry A. Blackmun, não chegou a equiparar a discriminação de sexo à racial, limitando-se a declarar que as leis que traçam limites apenas com base no sexo envolvem necessariamente o “tipo de escolha legislativa arbitrária proibida pela Constituição”.
Em abril de 1974, Ruth Bader Ginsburg arguiu seu segundo caso perante a Suprema Corte, Kahn v. Shevin. Desde 1941, a Flórida concedia uma isenção de $500 dólares de imposto sobre a propriedade para viúvas, mas não havia uma previsão similar para viúvos. O viúvo Mel Kahn requereu este benefício perante a divisão fiscal do condado, o que lhe foi negado. Ele então ajuizou uma ação na corte local, buscando uma sentença declaratória. A corte entendeu que a legislação em questão, que diferenciava beneficiários em razão de seu gênero, violava a cláusula de igual proteção da 14ª emenda da Constituição norte-americana.
A Suprema Corte da Flórida reverteu o julgado e decidiu que a classificação de gênero tinha uma “justa e substancial relação” com o propósito da norma. O caso foi então levado à Suprema Corte com o seguinte questionamento: a regulamentação da Flórida que provê apenas isenções fiscais a viúvas viola a cláusula de igual proteção da 14ª Emenda?
Em decisão majoritária de 6 a 3, com voto condutor prolatado pelo Justice William O. Douglas, a Suprema Corte decidiu que não. Plasmou que mulheres solteiras enfrentam significativamente mais dificuldades no mercado de trabalho do que homens solteiros, e que tal disparidade possui especial relevância no caso de esposas sobreviventes. Enquanto viúvos, em geral, conseguem manter o trabalho que eles tinham previamente, muitas viúvas se deparam com a necessidade de entrar pela primeira vez no mercado de trabalho ou de retornar após uma licença estendida. Com base nessas diferenças, a Corte considerou que a classificação de gênero na norma da Flórida tinha uma “justa e substancial relação” com o propósito da legislação de abrandar o impacto financeiro da perda de um parceiro.
Justice William J. Brennan Jr. redigiu um voto discordante em que alegou que classificações baseadas em características sobre as quais os indivíduos não têm controle, tais como gênero, devem estar sujeitas a escrutínio judicial estrito. Em tais casos, o governo deveria provar que estas classificações servem não apenas a um interesse governamental justificável, mas também que este interesse não pode ser atendido por nenhuma outra classificação. No caso em tela, ele afirmou que o propósito da legislação poderia ser alcançado sem a discriminação de gênero. Justice Thurgood Marshall aderiu à divergência, e, em outro voto divergente, Justice Byron R. White escreveu que classificações de gênero exigem justificativa significativa, o que a Flórida não apresentou.
No caso Weinberger v. Wiesenfeld, decidido em março de 1975, Stephen Wiesenfeld e Paula Polatschek eram casados desde 1970. Polatschek trabalhara como professora por 5 anos antes do casamento e continuou a lecionar depois de casada. Seu salário era a fonte principal de renda do casal e contribuições sociais eram deduzidas regularmente dele. Em 1972, Polatschek faleceu ao dar à luz, o que deixou a Wiesenfeld os cuidados do bebê. Wiesenfeld entrou com pedido de benefícios sociais para ele e o filho do casal, mas o benefício foi concedido apenas à criança. O regulamento da Seguridade Social da época previa que benefícios baseados nos ganhos de um marido e pai falecidos podem ser concedidos para filho(a)s e viúva. Entretanto, os benefícios advindos dos rendimentos de uma mulher e mãe estão apenas disponíveis para a prole.
Em 1973, Wiesenfeld moveu um processo em seu nome e de viúvos em situações semelhantes. Ele argumentou que a seção do regulamento da Seguridade Social em questão discriminava com base em seu sexo e pediu julgamento sumário, que foi acatado por um painel composto por 3 juízes da corte distrital. O questionamento suscitado à Suprema Corte foi: a distinção dos benefícios da Seguridade Social com base em gênero viola a cláusula do devido processo da 5ª Emenda à constituição americana?
Em decisão unânime, com Voto da Lavra do Justice William J. Brennan Jr., a Suprema Corte entendeu que o propósito da existência dos benefícios da seguridade Social para o cônjuge sobrevivente e para a prole é permitir que aquele cuide propriamente das crianças, independente de seu gênero. A discriminação de gênero em relação à concessão desses benefícios é, portanto, ao mesmo tempo ilógica e improdutiva.
O Justice Lewis F. Powell, Jr. redigiu um voto concorrente, ao qual aderiu o então presidente da corte Warren E. Burger, onde argumentou que a classificação de gênero dos benefícios da seguridade social não serve a nenhum interesse governamental legítimo. Em seu voto concorrente, Justice William H. Rehnquist escreveu que o voto da maioria excedeu os limites da questão proposta ao decidir se o regulamento violou ou não a 5ª Emenda. Ele alegou que o regulamento não servia a qualquer propósito legislativo válido e que poderia ser derrubado apenas com esta fundamentação.
No caso Califano v. Goldfarb, de março de 1977, Leon Goldfarb era um viúvo que solicitou o subsídio de sobrevivência ao abrigo da Lei da Seguridade Social. Apesar de sua esposa Hannah ter realizado o pagamento de todas as suas contribuições à seguridade social por 25 anos, sua requisição foi negada. Para que Goldfarb fosse apto a receber tal benefício, metade de seus rendimentos financeiros deveriam provir de sua esposa ao tempo da morte dela. Entretanto, a lei não impunha a mesma exigência a mulheres viúvas.
Goldfarb recorreu à Corte distrital de Nova Iorque para contestar esta norma com base na cláusula do devido processo legal da 5ª emenda à Constituição. A corte decidiu que a norma era inconstitucional e a parte vencida apelou à Suprema Corte. A questão apresentada à Suprema Corte foi: as exigências para a concessão de benefícios a viúvos baseadas em seu gênero e presentes na Seção 402 da Lei da Seguridade Social violam a cláusula do devido processo legal da 5ª Emenda?
Por 5 votos a 4, com voto condutor emanado pelo Juiz William J. Brennan Jr., a Corte confirmou a decisão do tribunal distrital, que já havia decidido que o regulamento em questão era inconstitucional. Justice Brennan Jr. descreveu esta situação como indistinguível daquela apresentada no caso Weinberger v. Wiesenfeld, em que uma legislação similar foi invalidada por dar menos proteção à família de uma empregada mulher do que à família de um empregado homem. A Corte rejeitou as “generalizações arcaicas e amplas” de que haveria uma maior probabilidade de uma esposa ser dependente do seu marido do que o contrário. Apontou ainda que essas “noções ultrapassadas” dos papéis dos gêneros não são suficientes para justificar o tratamento diferenciado entre viúvos e viúvas, e, portanto, violam a cláusula do devido processo.
Em Duren v. Missouri, de janeiro de 1979, um júri havia condenado Billy Duren por assassinato de primeiro grau e roubo. Duren alegou que a seleção deste júri violou a 6ª e a 14ª emendas, que conferem o direito a um julgamento por um júri escolhido a partir de uma amostra justa (corte transversal) da comunidade. O condado de Jackson havia permitido uma isenção automática do serviço ao júri para mulheres, mediante requisição. Ainda que 54% da população de Jackson County fosse composta por mulheres, elas eram apenas 26,7% dos convocados ao júri. O julgamento de Duren foi realizado por um júri integralmente masculino, selecionado a partir de um painel de 48 homens e 5 mulheres.
A Suprema Corte do Missouri confirmou a condenação pelo júri e questionou as estatísticas apresentadas por Duren. O tribunal considerou também que, mesmo se as mulheres estivessem desproporcionalmente excluídas do serviço do júri, a quantidade de mulheres que participaram do processo estava bem acima dos padrões constitucionais. O caso é levado à Suprema Corte para que ela responda a seguinte formulação: a prática de isentar automaticamente mulheres do serviço de júri, adotada pelo condado de Jackson, viola a 6ª e a 14ª emendas, que garantem um julgamento por um júri escolhido a partir de um corte transversal da comunidade?
O julgamento foi decidido por 8 votos a 1. O juiz Byron R. White, em seu voto condutor, reverteu a decisão da corte estadual do Missouri. A Suprema Corte entendeu que a evidência estatística apresentada por Duren era suficiente para provar que o processo de seleção do júri no condado de Jackson violava os alegados direitos constitucionais. Duren comprovou haver um grupo “distinto” sub-representado resultante da prática. Além disso, não estava em jogo nenhum interesse estatal significativo que justificasse a isenção de mulheres do serviço do júri.
Estes são cinco dos casos históricos arguidos por RGB perante a Suprema Corte enquanto na posição de advogada contenciosa.
Em 1980, Ruth Bader Ginsburg aceita a indicação do presidente Jimmy Carter para a Corte Federal de Apelações do Distrito de Columbia (uma das 13 cortes federais de apelações existentes nos EUA, que equivaleriam aos tribunais regionais federais brasileiros). Ela viria a deixar a Corte de Apelações na década de 90 para assumir a maior e mais longa bravata de sua vida legal.
A SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS
Ruth Bader Ginsburg foi nomeada à Suprema Corte em 1993 pelo então presidente democrata Bill Clinton, tornando-se a segunda juíza mulher a ocupar um dos nove disputados assentos na mais alta corte norte-americana – a primeira foi Sandra O´Connor, empossada em 1981. Costuma-se dizer que RBG inicia sua carreira de juíza exatamente onde havia parado na advocacia: lutando pelos direitos femininos. Ao longo de seus 27 anos no Tribunal, ela redigiu 483 opiniões e votos dissidentes que marcaram toda uma geração de conquistas jurídicas e cujo legado será experimentado por décadas.
Seu estilo de atuar, já agora do outro lado do balcão jurídico, também permanecera o mesmo: lento, mas constante e calculado. Em vez de criar limitações mais amplas à discriminação de gênero, ela atacou áreas específicas de iniquidade e violações de direitos das mulheres, de modo a enviar uma mensagem aos legisladores sobre o que eles poderiam e não poderiam fazer em sua atividade legislativa. Sua atitude tinha o claro intuito de demonstrar que mudanças sociais estruturais não deveriam vir dos tribunais, mas sim das casas legislativas. Esse método permite que a evolução social continue a acontecer a partir da atuação do Congresso, o que garante maior estabilidade e apoio popular, mesmo que sob certa orientação da Corte.
Sua cautela em relação aos limites do poder judiciário foi, inclusive, alvo de críticas de setores mais liberais da população em razão de seus comentários sobre a decisão da Suprema Corte no caso Roe v. Wade em 1973, que legalizou o aborto em todos os 50 estados do território norte-americano. Apesar de concordar com a derrubada da legislação antiaborto do Texas - questionada pela autora da ação -, ela considerava muito abrangente a decisão da Suprema Corte que tornou toda e qualquer restrição ao aborto no país ilegal. Entendendo que a legislatura de diversos estados já estava se encaminhando para a liberalização das leis de aborto, não seria necessário muito tempo para que ele se tornasse amplamente lícito por meios legislativos, o que causaria menos controvérsias.
Por outro lado, a juíza não se esquivou de emitir opiniões cirúrgicas sempre que necessário. Ela divergiu no caso Ledbetter v. Goodyear Tire & Rubber Co., onde a requerente, uma empregada do sexo feminino que recebia um valor significativamente menor do que os trabalhadores de sexo masculino com as mesmas qualificações, moveu um processo com fulcro no chamado Título VII (do Ato de Direitos Civis de 1964), que protege empregados e aspirantes contra discriminações na relação de emprego baseadas em raça, cor, religião, sexo ou origem nacional. A requerente teve seu pedido rejeitado sob a justificativa de que a autora havia perdido o prazo de 180 dias para ajuizar uma ação por discriminação.
Os fatos desse caso emblemático misturavam suas duas paixões: processo civil e igualdade de gênero. Ela rompeu com a tradição e escreveu uma versão altamente coloquial de sua dissidência para ler do plenário, onde ela se posiciona de forma veemente no sentido de que a autora não deveria ser penalizada pelo atraso em ajuizar a ação se ela não compreendia que sofria discriminação até aquele momento. Ela argumenta que a disparidade de pagamento em geral ocorre com o decorrer do tempo e não é tão óbvia quanto outras formas de discriminação, como demissões ou recusa em promover um funcionário, que o empregado pode identificar com mais facilidade e buscar compensação de forma imediata.
Sua atuação nesse caso levou, mais tarde, à aprovação da Lei Lilly Ledbetter de Justa Remuneração, em 2009. Essa foi a primeira lei assinada por Barack Obama quando ele assumiu pela primeira vez a Casa Branca, revertendo a interpretação da Suprema Corte no caso Ledbetter e determinando que cada pagamento desigual faria com que a contagem do prazo para ajuizar uma reclamação recomeçasse. RBG mantinha uma cópia da lei em seu gabinete, servindo como um lembrete de mais uma conquista alcançada em prol das minorias.
Em 1996, Justice Ginsburg exarou o voto condutor no emblemático caso Estados Unidos v. Virgínia, em que era questionada a política de admissão do Instituto Militar da Virgínia, a única escola exclusiva para homens dentre as instituições públicas de ensino do estado da Virgínia. O instituto oferecia ensino de excelência e era amplamente reconhecido por produzir líderes, fazendo com que sua admissão fosse desejada por todos, independente de gênero. Mesmo alvo de protestos, a instituição se recusava a aceitar mulheres, quando então uma estudante resolve ajuizar uma ação contra o Estado da Virgínia alegando que este havia violado a cláusula de igual proteção da 14ª emenda à Constituição.
Em resposta ao julgamento da corte de apelações do quarto circuito em favor da aluna, o Estado da Virgínia criou um programa paralelo dedicado exclusivamente às mulheres. Apesar de terem missões semelhantes, o programa feminino era claramente inferior e não oferecia as mesmas opções de especialização que o programa masculino. O caso foi levado à Suprema Corte, que se encarregou de analisar a seguinte questão: se a criação de uma academia destinada exclusivamente a mulheres seria suficiente para satisfazer a cláusula de igual proteção da 14ª Emenda.
A Corte entendeu que a política de admissão era inconstitucional, por um total de 7 a 1. Em seu voto condutor, RBG afirmou que o estado da Virgínia não foi capaz de demonstrar nenhuma justificativa “excessivamente persuasiva” para excluir todas as mulheres do programa e afirmou que não podem ser automaticamente aceitas motivações utilizadas para defender exclusões absolutas com base em alegados benefícios educacionais. A partir daí, para que fosse aplicada uma classificação oficial baseada em gênero, o Estado teria o ônus de provar que: a) a justificativa para o tratamento diferenciado é excessivamente persuasiva; b) a classificação em questão serve a um objetivo governamental relevante; e c) os meios discriminatórios empregados estão substancialmente relacionados à conquista desse objetivo.
A juíza completa sua análise dizendo que diferenças inerentes a homens e mulheres não deveriam ser usadas para prejudicar ou impor restrições a qualquer um dos sexos e que generalizações a respeito das mulheres não poderá mais servir como justificativa para negar oportunidades àqueles cujos talentos e habilidades os diferenciam do que é considerado comum.
Outro caso emblemático de sua carreira foi Shelby County v. Holder, onde RBG foi voto vencido em uma decisão que declarou inconstitucional uma seção do Voting Rights Act (a Lei Eleitoral de 1965, que foi criada como resposta ao longo histórico de discriminação eleitoral em certos estados). A seção proibia distritos de realizar mudanças significativas sem prévia autorização na legislação e procedimentos eleitorais. Por acreditar que a normatização sob questionamento ainda possuía relevância no combate à discriminação, RBG não se uniu à maioria da corte e escreveu uma opinião incisiva que lhe rendeu o famoso apelido de “Notorious RBG”, cunhado em 2013 por uma estudante de direito da New York University em suas redes sociais.
Em seu voto, Ginsburg aponta que a história legislativa e texto da Constituição, assim como o precedente da Corte, embasavam a autoridade do Congresso para criar legislação que tem como alvo potenciais abusos por parte dos estados. Apesar de não possuir autoridade ilimitada, o Congresso deveria provar que os meios utilizados servem ao avanço racional de um objetivo legítimo, o que era o caso do Voting Rights Act. Ela completa com a frase impactante de que “quando confrontado com a mais torpe forma de discriminação e com o direito mais fundamental de nosso sistema democrático, é aí que o poder de atuação do Congresso encontra seu ápice”.
Já em Olmstead v. L.C., Justice Ginsburg redigiu a opinião majoritária da Corte para este outro emblemático pleito de direitos civis. O caso tratava de duas mulheres que sofriam de deficiência mental e foram colocadas em isolamento no Estado da Geórgia, que alegava não dispor dos recursos financeiros para mantê-las em um ambiente de integração comunitária, conforme prevê a Americans with Disabilities Act (ADA), a lei americana que trata de pessoas com deficiência. As perguntas propostas à corte em Olmstead v. L.C. foram as seguintes: a) se a proibição contra discriminação trazida pela ADA requeria a alocação de pessoas com deficiência mental em ambientes comunitários em vez de em instituições psiquiátricas; e b) se eventuais restrições financeiras deveriam determinar se estados cumpririam ou não suas obrigações oriundas da lei no que concerne a programas de tratamento para essas pessoas.
Em uma votação de 6 a 3 liderada por Ginsburg, a corte respondeu sim à primeira pergunta e não à segunda, decidindo que pessoas com deficiência mental devem ser alocadas em ambientes comunitários se o paciente estiver de acordo, se esse tipo de tratamento for recomendado por um profissional responsável e se esse tratamento for razoável quando considerado em conjunto com as necessidades de outras pessoas com deficiência. Ademais, limitações financeiras só poderiam influenciar no tratamento de pacientes em ambientes integrados (conforme manda a lei), se o estado comprovasse que a alocação de recursos financeiros para um paciente prejudicaria os demais, o que não ocorreu no caso em análise.
Reconhecida defensora dos direitos LGBTQ, Ruth Bader Ginsburg foi a primeira juíza da Suprema Corte a oficializar cerimônias de casamento entre casais do mesmo sexo e participou do emblemático caso Obergefell v. Hodges de 2015, em que o Tribunal derrubou, por 5 votos a 4, as barreiras legais a casamentos de casais do mesmo sexo em uma das decisões mais celebradas da última década. RBG se juntou ao voto condutor do Justice Kennedy, onde ele reconhece que o direito ao casamento para pessoas do mesmo sexo é parte da liberdade concedida pela 14ª Emenda à Constituição e deriva também da garantia constitucional de igual proteção perante a lei.
Ademais, a cláusula do devido processo legal da 14ª Emenda diz que o estado não pode privar nenhuma pessoa de sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal. As liberdades mencionadas nessa cláusula incluem certas escolhas pessoais essenciais ao exercício da autonomia, como o casamento. A geração que escreveu e ratificou a Declaração de Direitos (Bill of Rights) não presumia conhecer a extensão do conceito de liberdade em todas as dimensões, por isso confiou às gerações futuras o dever de proteger o direito de todos a usufruírem de sua liberdade conforme a sociedade for evoluindo e entendendo seu significado.
Como seus posicionamentos apontam, Ruth Bader Ginsburg integrou a ala liberal da Suprema Corte, cuja formação mais recente incluía também as juízas Sonia Sotomayor e Elena Kagan, e o juiz Stephen Breyer. Até o ano de 2018, ela nunca havia perdido sequer um dia de sustentações orais, nem mesmo quando estava sob tratamento de quimioterapia em razão do câncer pancreático, ou após sua cirurgia para retirar um câncer de colón, ou no dia seguinte à morte de seu marido Martin, em 2010. Àqueles que ousassem questionar sua capacidade de cumprir as funções judicantes com eficiência, bastava olhar o registro de suas participações em sustentações orais. Até a data de sua morte, ela esteve entre os mais ávidos questionadores da tribuna.
Em todas as sessões e conferências da Corte, ela destacava-se pelo alto preparo e por conhecer cada processo nos mínimos detalhes. Todas as vezes que precisava expressar discordância, ela o fazia de modo civilizado e respeitoso. Seus longos votos dissidentes (“I dissent”), sempre permeados por valores sólidos e argumentos robustos, eram uma de suas marcas distintivas. Nas palavras do Justice Anthony M. Kennedy, por meio de sua reverência à Constituição, RBG ensinou a preservá-la para garantir a liberdade na América.
O Judge Messitte lembra que, além de uma liberal, RBG era detentora de grande sensibilidade, cuidado e capacidade de ponderação. “Suas opiniões iam direto ao ponto e continham um sentimento não apenas de compaixão, mas de verdadeira indignação em relação ao fato de que certos grupos pudessem ser tratados com menos dignidade e ter acesso a menos oportunidades que todos os demais”, completa o juiz.
Nos últimos tempos, contudo, os afastamentos de RGB haviam se tornado mais recorrentes e sua saúde começara a preocupar. No início de 2020, ela anunciou estar se submetendo a um tratamento de câncer, que acabaria por vencê-la aos 87 anos de idade. Ruth era a juíza mais antiga em exercício, mas, apesar de sua idade já avançada, ela tinha o hábito de se exercitar com um personal trainer em seu gabinete e, por anos a fio, foi capaz de levantar mais peso do que os juízes Breyer e Kagan juntos.
A Suprema Corte emitiu um comunicado oficial de pesar sobre a sua morte em 19 setembro de 2020, um dia após seu falecimento, contendo declarações dos seus colegas de colegiado. Nas palavras do Presidente do Tribunal, Chief Justice John G. Roberts, Jr., a nação perdera uma jurista de estatura histórica, mas o lamento vinha acompanhado da confiança de que as gerações futuras irão se lembrar dela como uma incansável e resoluta defensora da justiça.
Uma lista completa dos casos em que RBG atuou na Suprema Corte pode ser consultada no site Justia (https://supreme.justia.com/justice-ruth-bader-ginsburg-cases/), que reúne todos os votos de sua autoria, incluindo decisões majoritárias e plurais, concorrentes, divergentes e outros tipos de votos.
A IMPORTÂNCIA DE RBG, A JUÍZA POP
“Uma heroína americana. Que passou a vida lutando pela igualdade de todas as pessoas e uma pioneira na defesa dos direitos das mulheres. Ela serviu ao tribunal e ao país com dedicação total, incansável, e com paixão por justiça. Ela deixa um legado que poucos poderiam questionar”. Estas são as palavras de sua colega, Justice Sonia Sotomayor, a primeira mulher latina a ocupar um assento na Suprema Corte.
Sua fala elogiosa é complementada pela outra integrante do sexo feminino do colegiado supremo, Justice Elena Kagan: “ela fez justiça todos os dias, trabalhando para garantir que o sistema legal deste país se mantivesse alinhado aos seus ideais e estendesse seus direitos e proteções àqueles uma vez excluídos. Em ambas as funções, ela sustentou - na verdade, excedeu - os mais altos padrões de arte legal. Seu trabalho (...) perdurará enquanto os americanos mantiverem seu compromisso com a lei”.
A trajetória de RBG foi majoritariamente marcada pelo apoio incansável às causas das mulheres e de minorias, tanto na sua vida profissional quanto acadêmica. Na academia, RBG começa a encontrar sua verdadeira missão e a traçar o honroso caminho que viria a consagrá-la como símbolo da defesa dos direitos das mulheres e da igualdade entre os sexos. Na advocacia, ela conduziu a luta para dar às mulheres direitos iguais perante a lei a partir de sua atuação na Suprema Corte como patrona de casos que viriam a se transformar em precedentes históricos (os chamados “landmark cases”), levando à derrubada e revisão de leis discriminatórias. Como juíza, RBG assumiu posições progressistas e promoveu avanços concretos no que toca à salvaguarda de direitos civis por meio de suas decisões e opiniões.
A filósofa Djamila Ribeiro define representatividade como o fenômeno que ocorre quando pessoas integrantes de minorias passam a ocupar espaços que elas foram historicamente impedidas de acessar. Esse fenômeno garante que aqueles que estavam à margem da sociedade se vejam em posições de protagonismo e independência, aumentando o senso de capacidade, de pertencimento e de participação social na formação de novas gerações que também emergem de minorias. Neste sentido, representatividade seguramente é um dos termos que melhor define o significado da figura de Ruth Bader Ginsburg.
Além de ter impactado concretamente a comunidade americana na direção de avanços sociais, tanto em sua atuação no magistério, quanto no sistema judiciário, a sua imagem enquanto mulher em posto de destaque empoderou e serviu de inspiração para incontáveis mulheres e meninas. Seu legado abriu estradas e derrubou obstáculos para que outras alcançassem os mesmos patamares.
Segundo o Justice Brett Kavanaugh, “nenhum americano jamais fez mais do que RBG para assegurar igualdade de justiça perante a lei para mulheres. Ela abriu caminhos para mulheres se tornarem advogadas e juízas. Ela fez com que mulheres e meninas pudessem competir em igualdade de condições como estudantes atletas. Sua figura deve ser mantida em destaque como um tributo duradouro e uma lembrança diária de que é necessário trabalhar duro e buscar a igualdade de justiça”.
A importância da participação feminina em posições de liderança é crucial por razões que vão além da representatividade. Mulheres, assim como outras minorias, trazem à baila experiências e visões de mundo diferentes, que contribuem para o enriquecimento das discussões. Elas enxergam problemas e soluções que os homens não vêem, já que a vivência masculina não engloba os mesmos desafios.
RBG é o expoente de uma geração e seu legado certamente tocará diversas outras gerações ainda por vir. É inegável que a comunidade jurídica e a nação americana evoluíram graças a seus serviços e ela ocupará sempre um lugar estimado na história da Corte como uma das mais distintas juízas e pela sua devoção e amor à pátria. O presidente da Suprema Corte John Roberts conta que sua colega, que era filha de um imigrante ucraniano e uma contadora americana costumava perguntar “Qual é a diferença entre uma contadora no Brooklyn e uma juíza da Suprema Corte?”, ao que respondia “Uma geração”.
Não é exagero afirmar que o ícone feminista RBG tornou-se uma verdadeira figura pop da cultura americana e fonte de inspiração para meninas que sonham em seguir seus passos. Uma de suas frases mais famosas dizia: “às vezes, as pessoas me perguntam quando haverá mulheres o suficiente na Suprema Corte. Eu respondo ‘quando houver 9’ e as pessoas ficam chocadas. Mas por anos a corte teve 9 ministros homens e ninguém questionava”. Outras de suas ideias mais reproduzidas dizia que “mulheres só terão igualdade real quando os homens dividirem com elas a responsabilidade de criar a nova geração”. E, ainda, “mulheres pertencem a todos os lugares onde decisões estejam sendo tomadas”; “se você é um homem e gosta de ensinar, de cuidar, ou de brincar de bonecas, tudo bem. Todos nós deveríamos ser livres para desenvolver nossos próprios talentos, quaisquer que sejam eles, e não sermos reprimidos por barreiras artificiais”; e “eu não peço nenhum favor em prol do meu gênero. Tudo o que eu peço aos nossos irmãos é que eles tirem os pés de nossos pescoços”.
O rosto da juíza e algumas de suas poderosas citações estampam pôsteres, canecas, camisetas e os mais diversos tipos de souvenirs em todo o país. Sua história foi retratada em obras literárias e cinematográficas, como o documentário “RBG” e o filme “Suprema”, ambos lançados em 2018. Apesar de suas opiniões incisivas e da força hercúlea que demonstrou na luta contra a desigualdade e na superação das adversidades que cruzaram seu caminho, a figura terna da pequena senhorinha de óculos, coque e colarinho rendado desperta um sentimento de carinho e quase familiaridade.
O Judge Messitte conta que a juíza é uma verdadeira heroína para sua neta de 9 anos, que se fantasiou de RBG em um Halloween. Na mesa de seu gabinete está exposta a foto da menina vestida com as roupas características da juíza e autografada pela própria.
A SUBSTITUIÇÃO DE RBG E SEUS DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS
Enquanto os admiradores despediam-se de RBG, discutia-se no meio político a sua substituição. Nos Estados Unidos, os juízes da Suprema Corte são nomeados pelo presidente em exercício e sujeitos a uma audiência de confirmação pelo Comitê Judiciário do Senado. Trump posicionou-se ato contínuo à passagem de RBG, afirmando que nomearia uma substituta mulher para ocupar a cadeira antes do fim de seu mandato, causando divergências. Democratas argumentavam ser injusta a indicação de uma juíza a poucas semanas das eleições, que aconteceram no dia 3 de novembro.
Situação semelhante ocorreu ao final do segundo mandato de Barack Obama. À época, os republicanos protestaram contra a nomeação de um substituto para ocupar o assento do conservador Antonin Scalia, que havia falecido em fevereiro de 2016, sob o argumento de que as eleições se aproximavam e que, portanto, os eleitores deveriam ter a chance de se pronunciar por meio da escolha do novo chefe do executivo. O líder da maioria republicana do Senado, Mitch McConnell, não permitiu que a Casa (controlada pelo Partido Republicano) sequer considerasse a nomeação do presidente democrata. Após o início de seu mandato, já em janeiro de 2017, Donald Trump imediatamente nomeia o conservador Neil Gorsuch para ocupar o lugar vago na Suprema Corte e sua nomeação é confirmada pelo Senado no início de abril.
Mesmo sob acusações de inconsistência e hipocrisia, já agora McConnell (que permanece líder do Senado de maioria Republicana) deixou claro que faria todos os esforços necessários para preencher a vacância ainda antes do final do ano. Como previsto, a então juíza da Corte de Apelações do Sétimo Circuito, Amy Coney Barrett, foi nomeada pelo presidente Trump e confirmada pelo Senado em tempo recorde, no dia 26 de outubro. A Suprema Corte, que já contava com uma maioria conservadora de 5 a 4, agora passa a ter uma maioria de 6 a 3, com a substituição da liberal Ruth Bader Ginsburg por Barrett, que possui um histórico consistente de posicionamentos conservadores.
Argumenta-se que essa mudança ideológica no principal órgão jurisdicional do país será sentida por décadas, já que a Corte exerce um papel central na determinação de políticas sociais no país. Teme-se que, tendo a corte composição conservadora, conquistas sociais como a legalização do aborto (decidida em 1973 no caso Roe v. Wade) e do casamento de pessoas do mesmo sexo (obtida com Obgerfell v. Hodges em 2015) em todo o território americano, ou até mesmo o Obamacare, que está atualmente sendo analisado pelo Tribunal, podem ser colocadas em risco.
Esses são apenas alguns exemplos de uma longa lista de temas controversos que podem chegar à Suprema Corte nos próximos anos, dentre os quais podemos citar imigração, discriminação, mudança climática, e até as eleições presidenciais de 2020. Judge Messitte afirma que a Corte está caminhando para tomar decisões que não são apoiadas pela maioria do povo americano. Ele cita o exemplo do direito ao aborto em todo o território nacional, que é aprovado por cerca de 65% da população. “O que temos aqui, na minha opinião, é o esforço de uma minoria de controlar o futuro”, diz.
Pupila do famoso conservador Antonin Scalia, Coney Barrett se autodeclara uma originalista. O originalismo no Direito norte-americano é uma vertente de interpretação judicial mais restrita que defende que as disposições da Constituição devem ser interpretadas de acordo com o significado que elas tinham à época de sua criação. O professor Aziz Hug, da Universidade de Chicago, declarou ao jornal “The Guardian” que o discurso político do originalismo está alinhado às preferências do partido republicano, que acaba promovendo aqueles que adotam essa interpretação da Constituição. A grande quantidade de nomeações do presidente Trump ao judiciário federal nos seus quatro anos de mandato colocou a corrente originalista em grande evidência.
Segundo o Judge Messitte, o partido republicano já sinalizara há algumas décadas que tinha como um de seus principais objetivos povoar o sistema judiciário com magistrados de orientação conservadora. Os juízes do sistema judiciário federal americano, desde a primeira instância à Suprema Corte, são apontados pelo presidente (e confirmados pelo Senado) e detêm seu cargo de modo vitalício. Ao contrário do Brasil, onde existe a aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade, nos Estados Unidos, os magistrados só podem ser removidos do cargo através de um processo de “impeachment”.
Em menos de quatro anos, Trump nomeou mais de 230 juízes federais, incluindo três para a Suprema Corte (tornando-se o primeiro presidente americano desde Ronald Reagan a nomear três juízes da Suprema Corte. Atualmente, 26% dos magistrados federais em exercício foram indicados por Trump, o que é um alto número quando comparado aos 38% apontados por Obama ao longo de oito anos de governo e aos 20% der seu antecessor republicano, George W. Bush. A alta vacância deve-se à colaboração ativa de Mitch McConnell, que embarreirou diversas audiências de confirmação no Senado nos últimos dois anos do governo Obama e fez com que Trump herdasse 103 vagas a serem preenchidas.
Em razão da recente guinada da Corte para a direita, hoje em dia discute-se a possibilidade de aumentar o número de seus membros. A questão foi inclusive pauta na campanha eleitoral presidencial de 2020, sendo Joe Biden pressionado por ala dos democratas a encampar publicamente posição favorável à expansão da composição do Tribunal. O Judge Peter Messitte, que também é especialista em Direito Comparado entre Brasil e Estados Unidos, explica que ao contrário do STF, onde existe a figura da decisão monocrática, na Suprema Corte americana todos os nove juízes estão envolvidos em todos os casos analisados.
MULHERES NA JUSTIÇA BRASILEIRA
RBG foi uma mulher pioneira na história jurídica norte-americana. Mas e as mulheres pioneiras no Direito brasileiro? Como está a situação atualmente? E para onde caminhamos – a que velocidade?
Durante seu discurso na posse da nova presidência do STF, o Ministro Marco Aurélio Mello referiu-se à Ministra Rosa Weber, empossada vice-presidente na ocasião, como “baluarte de uma geração de mulheres lutadoras, que vem mudando o panorama profissional no Brasil, principalmente no âmbito jurídico”. Mas será isto verdade? Vamos às evidências.
A primeira advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi Myrthes Gomes de Campos, nascida em Macaé (norte do Estado do Rio de Janeiro) e formada pela Faculdade Nacional de Direito (FND, hoje parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ), em 1898. Myrthes foi sufragista, defensora da emancipação das mulheres e participou diretamente de campanhas em favor do voto feminino.
Uma das primeiras professoras a lecionar em faculdades de Direito no país foi Bernadete Neves Pedrosa, que tomou posse na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1965. No mesmo ano, Esther de Figueiredo Ferraz tornou-se a primeira reitora do sexo feminino em uma universidade brasileira, a Mackenzie. Esther também foi a primeira mulher ministra de governo no Brasil, ocupando a direção do Ministério da Educação em 1982. A primeira professora titular do Largo do São Francisco (faculdade de direito da Universidade de São Paulo, USP) foi Nair Lemos Gonçalves, em 1976, e a primeira diretora foi Ivette Senise Ferreira, em 1998. No Rio de Janeiro, apenas em 2020, Heloísa Helena Barboza tornou-se a primeira mulher a dirigir a faculdade de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), após 85 anos de história da escola.
A primeira mulher a ocupar um assento no STF foi a Ministra Ellen Gracie, nomeada em 2000 e permanecendo na Corte até 2011. Além da Ministra Ellen Gracie, o Brasil teve mais duas mulheres na Corte Suprema, as Ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, ambas ainda em atividade. Em outras palavras, dentre os 168 ministros que já compuseram o Supremo, apenas 3 foram mulheres, o que corresponde a menos de 2% do quadro. A recente indicação, pelo presidente Jair Bolsonaro, do desembargador Kássio Nunes Marques ao cargo de ministro do STF para preencher a vaga deixada pela aposentadoria do decano Celso de Melo, deixa um hiato de quase seis anos desde a última nomeação de uma mulher a uma corte superior no Brasil. Ela foi Maria Helena Mallmann Miranda Arantes, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em 2014.
Desde 2010, foram abertas 45 vagas em tribunais superiores, das quais apenas seis acabaram preenchidas por mulheres. Foram elas: Rosa Weber, no STF; Regina Helena Costa, Assusete Magalhães e Isabel Galotti, no STJ; Delaíde Alves e Maria Helena Mallmann Miranda Arantes, no TST. Nenhuma delas é negra. Isso significa que as mulheres foram chamadas a ocupar apenas 13,3% das vagas no STF, STJ, TST e STM (Superior Tribunal Militar). Em verdade, o STM teve apenas uma mulher em seus quadros ao longo de toda sua história: a Ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, empossada em 2007. No STJ, a última Ministra a tomar posse foi Regina Helena Costa, em 2013; e, no STF, a Ministra Rosa Weber, em 2011.
De acordo com dados levantados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o relatório “Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário”, a presença feminina na magistratura assume forma piramidal: no primeiro grau há mais mulheres, mas a quantidade fica menor no segundo grau e ainda mais reduzida nas Cortes superiores. Em 2019, quando elaborado o estudo, eram 38,8% de mulheres na magistratura, sendo 39,3% de juízas de primeiro grau e 25,7% de desembargadoras. A Justiça do Trabalho era o ramo com maior participação feminina (50,5%), seguida pela Justiça Estadual (37,4%). Por outro lado, a Justiça Militar Estadual apresentava o menor índice de mulheres, com 3,7%.
Com base em números de 2019 fornecidos pelo CNJ e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a divisão percentual entre os sexos nos tribunais Superiores está posta da seguinte forma: o STF e o STJ estão compostos por 82% de homens e 18% de mulheres; O TSE é integralmente composto por homens; e o TST apresenta uma composição de 81% de homens e 19% de mulheres.
Na primeira instância do Poder Judiciário estadual, 24 dos 27 Estados e o Distrito Federal (DF) possuem mais juízes homens, sendo que em 17 deles o percentual de diferença é superior a 20%. Na segunda instância, apenas o Estado do Pará possui mais mulheres. Em Pernambuco, 98% dos desembargadores são homens. Em São Paulo, 92%.
Na justiça federal, apenas o Estado do Amazonas possui mais juízas em 1ª instancia (55%). Em 24 dos 27 Estados e o DF, as médias de participação de homens no judiciário federal é maior do que 70%. Em segunda instância, ou seja, no âmbito dos Tribunais Regionais Federais (TRFs), a média é de 80% de homens e 20% de mulheres entre os desembargadores e desembargadoras.
A seu turno, na advocacia, com base nas inscrições nos quadros da OAB, há paridade de gênero no exercício da profissão, sendo 50% homens e 50% mulheres. Contudo, importa salientar que esses números não significam que as mesmas chances estejam ao alcance de homens e mulheres. Uma pesquisa publicada na revista de sociologia da USP indica que 76,5% dos sócios de escritórios de advocacia com mais de 50 associados são homens.
As estatísticas demonstram de modo cristalino a dificuldade de acesso das mulheres aos tribunais, notadamente os superiores. E a posições de chefia em grandes bancas de advocacia. Infelizmente, essa realidade não é restrita ao sistema legal. As mulheres estão atrás dos homens em diversos indicadores no campo profissional, tanto em relação à remuneração, quanto à ocupação de cargos de liderança. Decerto, tal fenômeno não se deve a um maior mérito dos homens, mas é um retrato de uma distribuição anacrônica e desigual de oportunidades
As dificuldades são geradas por um contexto de desigualdade de gênero que permeia as escolhas tomadas pelas mulheres e dificulta o seu acesso a espaços de tomada de decisão. O machismo e discriminações estruturais; a dificuldade de conciliar a vida pessoal, a vida familiar – particularmente a maternidade – e a profissional; e a falta de políticas próprias para viabilizar o acesso e permanência das mulheres no mercado de trabalho são elementos apontados como responsáveis por reduzir as chances femininas. Promover a equidade de gênero passa por romper uma “barreira silenciosa” que impede que mulheres sejam chamadas a ocupar altos cargos e não é alvo de questionamentos.
Os responsáveis por processos seletivos, não raro influenciados por vieses (conscientes e inconscientes), dão preferência a candidatos que se encaixam no padrão do homem branco. A situação é ainda mais crítica quando se olha para as mulheres negras. Embora inegavelmente ainda exista um longo e duro caminho a percorrer, mulheres brancas já conseguiram muitos avanços, enquanto mulheres negras permanecem ainda mais à margem da sociedade.
Quanto ao Judiciário, a forma como as promoções são realizadas na justiça (por antiguidade e merecimento) e o sistema de indicação aos tribunais superiores, este baseado no critério político, também se apresentam como óbices. A ministra Regina Helena Costa, do STJ, aponta que mesmo no critério de merecimento previsto no segundo grau “há uma análise de componente subjetivo, por vezes político, que acaba prestigiando os magistrados do sexo masculino” - a antes mencionada “barreira silenciosa”, que causa também um fenômeno comum no Brasil de colegiados unicamente masculinos.
“Todos nós que vivemos sob a Constituição de 1988 temos um compromisso ético e moral com a igualdade de gênero, mas esse compromisso só é autêntico se começa em casa, na Justiça”, resume a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge. Dodge foi a primeira mulher a ocupar o cargo máximo do Ministério Público Federal (MPF), entre 2017 e 2019. Ela foi a primeira procuradora-geral depois de 41 procuradores-gerais homens. A consequência prática da falta de mulheres no Judiciário, segundo a procuradora Ela Wiecko, que ocupou o cargo de vice-procuradora-geral da República entre 2013 e 2016, é que o próprio conceito de Justiça é ameaçado pela iniquidade. “Na medida em que elas não participam, não são ouvidas, não se consegue fazer a Justiça, porque a Justiça depende de se ter uma compreensão da realidade, de como as coisas acontecem”, pontua.
De fato, não está em jogo apenas o direito das mulheres de fazerem parte do judiciário, mas o direito da sociedade de ter mulheres compondo o Poder Judiciário. Permitir que as decisões judiciais sejam proferidas majoritariamente por iguais, que compartilham das mesmas experiências, impede que as perspectivas dos demais grupos sociais estejam presentes nos resultados obtidos, o que gera um impacto de legitimidade das decisões, como observa Tani Mara Wurster, da Ajufe Mulheres. É necessário que os grupos que vão definir o que é o Direito no âmbito de uma determinada sociedade sejam diversos, emprestando eficiência e credibilidade ao que por eles é produzido.
Finalmente, a maior presença das mulheres na justiça e em todas as camadas profissionais, certamente ajudará a coibir absurdos como o ocorrido recentemente quando um juiz da Vara de Família de São Paulo foi filmado fazendo declarações misóginas durante uma audiência virtual. Apesar da mulher já ter sofrido violência doméstica do ex-companheiro, o juiz insistiu para que houvesse a reaproximação do casal e minimizou a importância da Lei Maria da Penha e das medidas protetivas, desferindo um sonoro “tô nem aí (...) ninguém agride ninguém de graça”.
Esse triste episódio, assim como a trágica morte da juíza carioca Arronenzi, assassianada com 16 facadas pelo ex-marido e pai de suas filhas, tornam patente a importância de o Direito ser instrumento para que a mulher tenha vez e voz, seja partícipe e também figura central, e veja seus direitos respeitados, rompendo-se com compromisso as barreias de gênero que oprimem o sexo feminino por gerações a fio.